Era fim de tarde,
e um sol frio hesitava no horizonte,
tão indeciso quanto um último suspiro,
na beira do abismo.
Não sabia se partia ou se ficava,
como quem teme morrer por ser belo demais.
O tempo parou no fio da navalha,
de um segundo que não queria passar.
Ela tirou os sapatos primeiro,
com a lentidão de uma menina,
porque há pés que só entendem o mundo
quando o chão lhes beija.
Ele riu,
um riso torto,
delicadamente inútil,
como poema na fila do banco.
Mas entendeu: há corpos que só falam quando se sujam de chão.
Do porta-luvas,
ela pescou um bombom esquecido,
do bolso dele, sua mão se esgueirou-se em busca de um isqueiro de tampa torta,
entre risos, migalhas e desejo,
a tensão dançava,
como um inseto bêbado na luz do farol.
— “Faz quanto tempo?” — ela perguntou,
com a voz suada de lembrança.
— “Desde quando?” — ele devolveu,
soprando fumaça, como quem desenha céu em chapa de aço.
Ela calou.
Não precisava dizer.
Certas perguntas são só espelhos onde o desejo,
anda descalço.
O céu era uma paleta de ferrugem e vinho.
E ali, entre o mato e o silêncio da BR esquecida,
rumo a um paraíso inventado,
o velho Fusca 73 roncava quieto,
capô morno como o peito de um bicho cansado.
Ele saíra da estrada como quem desiste de um mapa,
quando encontra um beijo.
O banco do passageiro reclinou com memória,
o couro gemia,
lembrando noites que só os corpos sabem contar.
E o amor,
quando se esconde demais,
vira fome.
Ela, se despiu,
nua, tatuada, inteira: revelou-se.
Seus olhos brotavam sede,
daquela que nasce dos ossos ou da infância: fome que nunca foi comida,
sede que nenhuma água sacia.
O céu escurecia devagar.
Vaga-lumes vieram assistir,
como os primeiros anjos do apocalipse íntimo.
No rádio, um chiado: Raul sussurrava de um além analógico, lucidez e maluquez, razão e febre.
— “Lembra da estrada de terra?”
— “Do bar de cerveja quente?”
— “Do bodegueiro com o rifle de sal?”
Riram e no riso,
suas peles se reconheceram,
como se o tempo fosse um velho vinil riscado.
Ela montou sobre capô como quem galopa um animal extinto.
Não queria domar, queria ser domada,
pelo indomável.
Suas mãos, cartógrafas antigas,
sabiam o caminho.
Tocavam, cheiravam, lambiam,
como quem lê um livro sagrado,
já mil vezes reaberto.
O ar se adensou.
Parecia o de um teatro antes do terceiro ato.
Ali, sobre o capô quente, ela buscava uma marcha,
e encontrou um corpo.
Nasceu o som de dois seres se perdendo,
para se encontrarem: um dueto de gemidos,
meio prazer, meio lamento,
por tudo o que não se viveu nos anos 70.
Ela mordeu seu ombro
como quem morde o passado
em busca de um restinho de néctar.
O orgasmo foi um grito,
que deixou silêncio em ruínas.
O coração batia como tambor de guerra vencida.
Lá fora, o vento sacudia as folhas secas,
como se também soubesse:
algo terminara ali.
A natureza, indiscreta,
anunciava em folhas e galhos: “Dois corpos fundiram-se como se fossem um só, à beira do mundo.”
Ela acendeu um cigarro nua, seu corpo era uma escritura de tatuagens.
— “Amanhã seguimos rumo ao paraíso?”
— “Claro.”
— “Mas algo ficou.”
— “Sempre fica.”
E ficou mesmo: o cheiro dela no ar,
um fio de cabelo na engrenagem do tempo,
a marca do quadril no capô,
o gosto do beijo preso entre os dentes dele.
Ela se postou diante do Fusca como quem termina um ritual.
Ele a seguiu com os olhos, mas não com os passos.
Algumas despedidas pedem,
silêncio e distância.
Entraram no carro,
sem dizer mais nada,
amando-se na beira de um caminho,
sem acostamento.
Há deuses que só fazem sentido,
pelo retrovisor.
Na estrada, o céu era já uma boca escura, faminta.
O farol do Fusca cortava a noite,
como um grito preso na garganta.
Ela cantava baixinho a última música do rádio,
Ele quis dizer algo, mas calou.
Palavras, às vezes, são espadas,
que matam o milagre do silêncio.
Ele ligou o motor.
O som antigo o acalentou,
como se o passado dissesse:
- “Vai. Eu seguro tua dor e teu gozo por mais uns quilômetros.”
O amor deles era de uma série com som de fita cassete.
De poema sujo, suor,
desodorante vencido,
pão de posto de gasolina.
Era real e por isso, doía.
Na trilha sonora,
tem buzina,
ranger de mola,
e medo de faltar dinheiro na próxima curva.
Mas ali,
entre o entardecer e a noite total,
o corpo saciado e vazio
que começa a ocupar os espaços,
algo foi salvo.
Não eles, mas a parte humana dos humanos:
a entrega breve,
intensa, puro mesmo sujo,
eterno mesmo fugaz,
amor mesmo quando já é adeus.
A estrada sumia no retrovisor
como um cometa que jamais voltaria.
Mas ele sabia: há estrelas que só brilham uma vez,
e isso basta para iluminar a noite inteira.
O Fusca engatou a primeira.
A estrada abriu sua língua de asfalto,
úmida, faminta, como ela estivera há pouco tempo.
E o motor, velho contador de histórias,
mastigava quilômetros,
como quem ainda sonha em ser menino.
Ele sorriu. Não de felicidade.
Era o sorriso cínico de quem sabe: tudo que vale a pena…vale perder.
Naquela noite,
sob o capô quente do Fusca 73,
abriu-se uma fenda entre o que foi
e o que jamais será.
Dois corpos, suados, desencontrados,
inventaram o tempo.
Tempo generoso por um instante,
parou para vê-los se amar.
Naquela tarde de domingo,
dançaram o próprio destino,
nus, sinceros, sujos e livres.
Despiram-se do futuro, medo, mundo.
Despediram-se do amor, como quem agradece
por ter vivido.
E o mundo, por mais de um segundo,
soube, enfim, o que é ser humano.